A estratégia do jogo O escritor Flávio Moreira da Costa, autor do recém-lançado 'Malvadeza Durão' e outros contos (Agir), investiga o jogo que existe em um conto de 'Sagarana' http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/cadernos/ideias/2006/02/17/joride20060217006.html Flávio Moreira da Costa Escritor ''Todo jogo é uma história, é uma complicação''. (Rui Chapéu, campeão de sinuca) Sim, nosso jogo será esse: uma história, uma complicação. A história, Minha gente, incluída em Sagarana. A complicação, bem, talvez sejam várias. Mas constate-se, nesse limite que é o começo: entre as obras de Guimarães Rosa, e mesmo no seu livro primeiro, Sagarana, um dos textos menos distinguidos pela crítica rosiana, e menos lembrado pelos leitores. A literatura-leitura, pois, da nossa história começa já no primeiro parágrafo, com o personagem-narrador não-nomeado, em princípio, também ele, de viagem, constatando seu conhecimento da trajetória. Afinal, pensamos, um jogo só existe se existirem regras previamente aceitas. O narrador parece aceitá-las, já que se vê compelido a ele, ao jogo-viagem. Joga-se pois na estrada em direção à fazenda da prima Maria Irma, sem mistérios nem incógnitas. Até aqui, nenhuma encruzilhada. Nem contradição. Como o contrário da palavra ''jogo'' não é ''previsibilidade'', suas regras, as regras do jogo, dão margens às improvisações da vida e do conto, e o imprevisto, no fundo, significa o mistério do próprio jogo, com suas tensões, incertezas, inseguranças e surpresas. No jogo da vida o que vale é a vida em jogo. Não há trapaças nem trapaceiros que mudem o destino do homem, esse homem que, ele mesmo, constrói e traça seu próprio destino. (Jansenismo do mestre Rosa?) Por destino ou não, nosso personagem encontra um velho conhecido já no segundo parágrafo: é Santana, seu adversário de xadrez e contraponto da narrativa. Mais uma vez, e bem sugerido, jogo e vida em simbiótica relação - e se o personagem-narrador mostra-se meio perdido, mesmo sabendo o percurso, já para Santana, ''a vida é viva, e com ela amasiada''. Curioso no mínimo que justamente um jogador é aquele que não se inquieta com a vida, pois com ela vive amasiado. Ele é o antagonista-chave no decorrer da narrativa, e esta partida inicial com o narrador (interrompida, pois cada um segue para um lado) não tem um caráter aleatório, como poderia parecer. O jogo aponta para certos mistérios que a própria vida, mais tarde, irá desdobrar: os primeiros lances do narrador no tabuleiro de xadrez sugerem jogadas inábeis, lances a abrir flancos, como se a preparar desde o início, e inconscientemente, o caminho para a derrota. Mas o que o preocupa é rever a prima Maria Irma: ''Em outros tempos, fomos namorados''. O jogo admite então uma nova formalidade, e ele passa a armar sua estratégia para reconquistar a prima. No entanto, neste lance, como na partida com Santana, ele não dá mostras de jogar para ganhar. Primeiro, ''punha pouco preço no poder de sua compreensão''. Depois, hesita e recua ao se sentir rejeitado: ''Ainda bem. Não vim aqui para a roça para amar ninguém''. Por fim, desconfia que ela esteja apaixonada por outro, Ramiro, um rapaz que lhe traz livros, noivo de uma amiga dela, Armanda. Maria Irma, por sua vez, elabora seu jogo de sedução. Ela ''fitou-me com um olhar novo, quase prometedor'', observa ele. Num diálogo, Maria Irma quer e não quer saber (''Não. Não sou curiosa'') se ele deixou algum amor esperando por ele. No entanto, a ambigüidade de Maria Irma, inerente à sedução, não seria tão óbvia quanto aparenta. Há algo por trás dela: a prima estaria preparando em seu imaginário tabuleiro de xadrez sua própria estratégia; teria planos escondidos para o primo, planos que talvez não a incluíssem diretamente. Enquanto isso, ele tenta sair do xeque-mate da ambigüidade. Assim, depois de uma noite mal dormida - ''acordei de saudades (..) de Maria Irma'' -, ele tenta jogar mentalmente as peças, sem saber se joga seu jogo ou se joga o jogo que ela joga, como diria Laing. Diz ele: ''Não importa, no começo é assim mesmo - pensei. Devo mostrar-me caído, enamorado. Ceder terreno, para depois recuperá-lo. É boa tática... Um 'gabito do peão da Dama', como Santana dizia...''. Neste vai-e-vem acontece então o interregno com o Moleque Nicanor. Mesmo sem ser desafiado, nosso herói oferece ''dois mil réis'' ao moleque se ele conseguir ''pegar'' o cavalo Vira Saia. (Note-se: cavalo real, cavalo do xadrez). O moleque aceita; domina o animal. Perdedor, o narrador paga-lhe os dois mil réis, mas julga extrair do episódio mais uma ''estratégia'' (a palavra é dele) para conquistar Maria Irma: irá visitar Aldinha do Juca para despertar ciúmes na prima. Ela não lhe revela nenhum sentimento. E a reação dele? ''Mordi os beiços e não gemi. Santana teria apenas classificado: partida empatada, por xeque perpétuo...''. Há ainda outros lances no jogo: ele parte para a fazenda de outro parente e lá constata que Alda ''não é Maria Irma''. Mesmo assim a viagem serve a um outro jogo, secundário na narrativa, que é a política: ''Até minha inocente ida ao Juca Soares foi explorada em favor das manobras políticas do meu tio...''. (Note-se: ''inocente'' opondo-se a ''manobra''). De volta à fazenda do tio Emílio, o narrador-personagem resolve pedir ''um armistício'' à prima, diz que deseja ''parlamentar'' com ela. Maria Irma concorda, cheia de reticências, como uma jogadora profissional. Ele percebe o lance e ameaça ir embora. Ela reage, mexendo outra peça: diz que ele deveria ficar mais uns dias, que havia convidado Armanda para passar uns tempos na fazenda. ''Que astúcia você tem na cabecinha, prima?'' Ela desconversa. E, como quem não quer nada, mostra-lhe um retrato da amiga. Estaria ela, com Armanda, armando outro jogo? Perguntamos nós, não o primo, que vai para a casa de outro tio, o tio Ludovico, ''que não tem filha bonita nenhuma nem cuida de política''. Fica resguardado, mas até o dia em que lhe chegam duas cartas: uma, do tio Emílio, comunicando vitória nas urnas e insistindo na sua volta; a outra, de Santana, com o diagrama da partida de xadrez do início do conto interrompida: ''Verifiquei que o jogo não estava perdido para mim. Ao contrário!''. Será que mais uma vez nosso personagem se aproxima de um xeque-mate? Esperançoso, ele retorna à fazenda do tio Emílio, onde encontra a nova personagem, já anunciada: Maria Irma apresenta-lhe Armanda. ''Com cada um já falei muito do outro''. E logo sai de cena a prima. Só resta a ele conversar alguma coisa com Armanda, e, enquanto caminham, pensa: ''Crescia dentro de mim coisa definitiva...''. E eis que, inesperado, declara seu amor por ela. Simples: ''E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma com o moço Ramiro...''. Fim de todas as partidas: quem perde, ganha. Sim, depois de perder no xadrez para Santana e a partida de sedução para a prima, nosso herói não-nomeado ganha o amor de Armanda, que só aparece no final, a ''fechar'' o conto, à maneira clássica. Uma reversão de expectativa, como acontece com os jogos e com os bons contos. No entanto, esta reversão de expectativa dá-se apenas do ponto de vista do leitor, e não de Maria Irma, a verdadeira condutora da ação. Já estava na epígrafe do conto, de extração popular: ''Tira a barca da barreira/ Deixa Maria passar/ Maria é feiticeira/ Ela passa sem molhar''. Feiticeira ou jogadora, Maria Irma armou o destino em jogo no jogo da narrativa, dos Gerais e da vida, a fim de conseguir seu próprio destino: com o romance do primo com Armanda, o noiva deste, Ramiro (que nem no conto aparece) ficava à sua disposição. Nonada, João: estratégia pura |
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