O campeão de xadrez diz que adora Paulo Coelho e que está para surgir oponente, máquina ou homem, que o vença no tabuleiro
VEJA Edição 1868 . 25 de agosto de 2004
Monica Weinberg
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Nos últimos dezenove anos, ninguém roubou do russo Garry Kasparov o primeiro lugar no ranking internacional do xadrez. Filho de um casal de engenheiros, ele aprendeu a jogar aos 7 anos de idade. Nascido no auge da Guerra Fria, Kasparov conquistou, aos 22 anos, o título de campeão mundial de xadrez – o tipo de conquista que os dirigentes de seu país costumavam apregoar como símbolo da superioridade intelectual soviética. Apesar disso, ele nunca foi um entusiasta do regime comunista. Hoje, aos 41 anos, vivendo em Moscou, continua um crítico do governo russo, que considera "autoritário e corrupto". Separado, pai de dois filhos, o enxadrista dá palestras a executivos de diversos países sobre como ter sucesso nos negócios usando estratégias do jogo no qual é gênio. Com esse objetivo, e acompanhado da namorada, a economista russa Daria Tarazova, de 23 anos, ele esteve na semana passada em São Paulo, onde também participou de um torneio amador de xadrez. Kasparov concedeu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – O escritor e humorista brasileiro Millôr Fernandes escreveu certa vez que "o xadrez é um jogo chinês que aumenta a capacidade de jogar xadrez". O senhor concorda?
Kasparov – Ele está certo em uma coisa: a maioria dos campeões só quer desenvolver a habilidade de jogar xadrez em nome de uma meta individualista, uma viagem ao próprio umbigo, em que o objetivo é ser mais e mais inteligente para... jogar xadrez. Os campeões têm, sim, a mente estreita. É preciso reconhecer que, para estar no topo da lista, não há muita escapatória. Despejar toda a energia no jogo, como eles fazem, torna-se um mal necessário. Eu tento fugir dessa sina como posso. Leio, vou ao cinema, dou palestras, escrevo livros, faço ginástica, penso nos meus filhos. Mas acho que o escritor cometeu um equívoco em sua afirmação.
Veja – Qual?
Kasparov – Ele está olhando apenas para aquele 1% das pessoas que jogam xadrez profissionalmente. Para o resto, o jogo não tem nada de limitador. Ao contrário, ajuda a abrir a cabeça. Está comprovado que o xadrez ajuda a melhorar a atenção, a disciplina, o pensamento lógico e a imaginação. Não é por acaso que, nas 13.000 escolas americanas onde se ensina xadrez, as crianças têm melhor desempenho em disciplinas como matemática e redação. Elas também demonstram ter um senso de responsabilidade mais aguçado.
Veja – Qual é a relação entre xadrez e senso de responsabilidade?
Kasparov – Está na moda dizer que tudo que acontece de ruim é responsabilidade de todo mundo. O jogo coloca as coisas no seu devido lugar: é você quem responde pelo movimento de suas peças, e mais ninguém. Como na vida, você é o único responsável pelos próprios atos.
Veja – O senhor considera o xadrez um jogo mais inteligente que os outros?
Kasparov – É o jogo mais inteligente. Demanda raciocínio sofisticado e não conta com técnicos, time nem sorte. O pôquer é complexo, mas, ainda assim, um jogador ruim pode vencer uma partida porque recebeu as melhores cartas. Num esporte de equipe, como o futebol, se o time vai bem, um Ronaldinho tem um ambiente favorável para brilhar e fazer gols. Já no xadrez, você está solitário do primeiro ao último lance. Se é derrotado, o fracasso é só seu.
Veja – A derrota ainda lhe causa sofrimento?
Kasparov – Perder é terrível. A derrota nunca deixa de doer fundo. Toda vez que isso ocorre, fico me punindo mentalmente, refazendo a partida na cabeça: "Onde errei?". E olha que jogo xadrez praticamente desde que saí da maternidade.
Veja – Como era ser um jovem campeão de xadrez na União Soviética, em plena Guerra Fria?
Kasparov – Certamente fui mais feliz do que os jovens da minha idade que viveram na velha União Soviética. A fama e o dinheiro me proporcionaram um artigo raro na época: a liberdade. Enquanto meus colegas ficavam restritos às prateleiras de produtos soviéticos, eu viajava pelo mundo e via filmes que conseguia no mercado negro. Sim, porque o sistema era hipócrita. Quem tinha dinheiro assistia em casa a filmes que jamais passariam no cinema comunista, como O Poderoso Chefão e Apocalypse Now. Fui privilegiado por ter acesso aos prazeres do Ocidente, embora o governo não gostasse de mim.
Veja – Por quê?
Kasparov – Nos bastidores, eu era visto como um alienígena. Primeiro, não gostavam da minha origem "pouco pura": sou filho de pai judeu com mãe armênia. Depois, nunca me manifestei a favor do governo russo – eles sabiam, por exemplo, que eu jamais serviria no Exército. Por causa de coisas como essas, minha presença no pódio do xadrez soviético era incômoda para o regime. Eles teriam preferido dar o ouro a um sujeito como Anatoly Karpov, abertamente simpático ao comunismo e de quem roubei o título mundial.
Veja – O senhor chegou a ser prejudicado pelo regime?
Kasparov – Em 1984, Karpov ainda era o melhor do mundo quando disputamos um torneio em Moscou. No início, ele estava ganhando, mas bastou a situação começar a se inverter para a federação suspender o campeonato, alegando que estávamos intelectualmente exauridos, sem condição de continuar. Eu me senti prejudicado. Um ano depois, contudo, faturei o título mundial e o governo teve de se resignar com o fato. Como eu era campeão, eles eram forçados a me tratar como um animal sagrado, um troféu nacional.
Veja – O xadrez era tão popular na União Soviética como o futebol no Brasil?
Kasparov – O xadrez nunca esteve perto de ser na União Soviética uma paixão nacional capaz de fazer um país inteiro chorar ou ir ao delírio, como acontece com o futebol no Brasil. Sempre foi um jogo utilizado como ferramenta ideológica do regime. Ganhar um torneio mundial de xadrez era uma forma de mostrar a supremacia intelectual soviética sobre o Ocidente "decadente". Por isso, o governo nunca investiu na massificação do esporte. O objetivo era apenas encontrar os supertalentos no meio de 1 milhão de pretendentes e estampá-los na vitrine do país. Foi sorte minha ter sido pescado na multidão.
Veja – O senhor acredita em sorte?
Kasparov – Para quem é brilhante, a sorte pesa menos. Quando o talento de uma pessoa é excepcional, como no meu caso, fica mais difícil passar uma vida inteira sem que ele seja descoberto. Beethoven e Verdi, por exemplo, eram considerados alunos de música ruins, mas acabaram tendo seu talento desvendado. O problema é quando as pessoas têm algum talento, mas nada que seja excepcional. Nesse caso, a sorte é mais importante. As que contam com ela vão bem na vida. Já a massa está fadada à mesmice e ao anonimato, mesmo sendo talentosa. Por quê? Azar do destino. Nesse ponto, acho que falo a mesma língua do Paulo Coelho. É um escritor que me serve de referência filosófica.
Veja – O que o senhor gosta na obra do Paulo Coelho?
Kasparov – Consulto sempre O Alquimista, que fica na minha mesinha-de-cabeceira. Ele mostra como a intuição é importante no processo de tomada de decisão. Uso isso no xadrez, que, diferentemente do que muita gente acredita, não é um jogo matemático finito, previsível. O xadrez é matematicamente infinito. Coloca diante de você milhares de possibilidades. Por isso, a intuição é importante: você tem de recorrer a ela na hora de optar por um movimento no tabuleiro.
Veja – Nas partidas que disputou contra o computador, o senhor ganhou e perdeu. Na sua opinião, quem é mais forte: o homem ou a máquina?
Kasparov – A desvantagem do homem em relação à máquina é que o computador é psicologicamente preciso, perfeito. Não tem instabilidade, mau humor, irritação, dor de cabeça. Já a vantagem do homem sobre o computador é a flexibilidade. O computador nasce programado para olhar o jogo de um determinado jeito, com uma estratégia preestabelecida, amarrada. E não muda. Eu, não. Tenho a habilidade de refazer a estratégia, trocar minhas prioridades. A máquina é movida pela lógica do cálculo perfeito. O homem tem o poder de fazer julgamentos. Tenho certeza de que o melhor homem, no seu melhor dia, ainda bate a eficiência da máquina – e vai ser assim durante muito tempo. Quando digo "o melhor homem", estou me referindo a não mais que quatro, cinco jogadores no mundo inteiro. Eu já provei ser um deles. Venci, mas fiquei exaurido, estraçalhado. Jogar me cansa cada vez mais.
Veja – A idade atrapalha?
Kasparov – Atrapalha. Não tenho mais a concentração de antes porque a minha cabeça está cheia de preocupações que passavam longe da minha juventude em Moscou. O acúmulo de atribuições típicas da minha idade contribui para fragilizar a concentração, vital para vencer o jogo. Também não sou mais movido por aquela fome louca de ganhar, ganhar e ganhar. Tenho essa voracidade em alguns jogos, não mais em todas as partidas como antes. E, para completar, o xadrez está se tornando um esporte cada vez mais físico, o que definitivamente coloca os mais velhos como eu em franca desvantagem.
Veja – Como assim, "mais físico"?
Kasparov – O xadrez é o mais violento dos esportes. Como numa guerra, o objetivo é minar o inimigo psicologicamente para trucidá-lo no tabuleiro. Nessa batalha, tem mais chances de vencer quem consegue despejar mais energia e manter mais concentração na partida. Energia e concentração, infelizmente, encolhem com a idade. Não é por acaso que os bons jogadores são cada vez mais jovens. A média de idade dos campeões é de 30 anos – e está caindo.
Veja – O senhor acha que as pessoas que não conseguem aprender xadrez são menos inteligentes do que aquelas que aprendem e jogam bem?
Kasparov – Pessoas que tenham um mínimo de interesse pelo jogo assimilam pelo menos o básico. Quem consegue superar esse nível rudimentar demonstra uma rara capacidade para fazer julgamentos e tomar decisões. Se fosse um executivo e quisesse recrutar um funcionário para a minha equipe, certamente ficaria com aquele que venceu os concorrentes no jogo.
Veja – Em suas palestras, o senhor diz que o uso de estratégias do xadrez pode ser útil nos negócios. Pode explicar melhor?
Kasparov – Acho que alguns ensinamentos extraídos do jogo podem servir de ferramenta para aumentar a produtividade em grandes companhias, por exemplo. Falo para os executivos nas palestras que dou pelo mundo que eles perdem tempo demais com detalhes. Digo que é importante ter distanciamento para olhar o jogo inteiro, uma visão panorâmica que permita traçar estratégias. Poucos conseguem virar essa chave.
Veja – Que tipo de conselho o senhor dá para que consigam?
Kasparov – O primeiro passo é prestar atenção na própria personalidade, mapeando defeitos e qualidades profissionais, para depois fazer a mesma coisa em relação ao oponente. O objetivo é criar um ambiente de negócios favorável a você – um ambiente em que as suas qualidades possam sobressair. É exatamente como no xadrez: é preciso conhecer o padrão do jogo, o estilo do adversário e seu desempenho nas últimas negociações. Outro ponto de minhas palestras, talvez o mais difícil, é como fazer o empresário entender que é necessário mudar a fórmula que já o levou ao sucesso uma vez. Ele tende a repeti-la. Ocorre que, se já deu certo, dificilmente dará de novo, porque a fórmula já terá se tornado previsível.
Veja – O senhor acha que seria um bom executivo?
Kasparov – Confesso que não. Prefiro a solidão do xadrez.
Veja – Os esportes de equipe não o atraem?
Kasparov – Tenho trauma de esportes de equipe. Certa vez, estava jogando uma partida de futebol. Fui dar uma cabeçada e consegui quebrar o nariz no confronto com outro jogador. Tenho nariz achatado até hoje por causa desse episódio. Esportes que demandam contato físico me metem medo. Por isso, não jogo vôlei nem basquete. Prefiro ficar nas modalidades individuais. Pratico remo e natação, por exemplo. Em termos de contato físico, o que mais gosto é de falar em público e ser parado na rua por um admirador.
Veja – O senhor parece gostar muito da fama.
Kasparov – É bom ser uma celebridade. Você ganha dinheiro, come a melhor comida, fica nos melhores hotéis e, no meu caso, tem liberdade de expressão. Por outro lado, por uma questão de segurança, vivo como se houvesse um vidro me separando do resto da humanidade. Isso é angustiante. Fui ao Rio de Janeiro em 1996 e me disseram que era uma cidade perigosa. A coisa mais ousada que consegui fazer foi visitar um bufê self-service de sorvete. Outro problema do sucesso é que ele traz inimigos.
Veja – O senhor tem muitos?
Kasparov – Tenho vários. Quem está no topo tanto tempo como eu coleciona inimigos. A maioria das pessoas odeia quando você ganha. Mas que fique claro: não estou nem aí para os meus oponentes. Sei que, se jogo bem, ganho. Sou como a Seleção Brasileira de Futebol. No xadrez, não existe ninguém à minha altura.
Fonte: http://veja.abril.com.br/250804/entrevista.html
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