domingo, 7 de junho de 2009

O HOMEM QUE VIA O TREM PASSAR

 

JB ON LINE

CAFÉ LITERÁRIO

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'O homem que via o trem passar' é considerado
a obra-prima de Simenon
Georges Simenon publicou 420 volumes em meio século de trabalho,
dos quais 84 casos do inspetor Maigret

Gustavo Bernardo | Ensaísta

 Certa vez Alfred Hitchcock ligou para a casa  de Georges Simenon. A secretária do escritor disse que ele não podia atender, pois estava escrevendo um romance. Hitchcock respondeu: "Tudo bem, eu espero ele terminar".

A anedota, verdadeira ou não, dá idéia da espantosa produção do autor belga. Escrevia uma novela em cerca de 11 dias, datilografando um capítulo por dia numa média de 92 palavras por minuto. Publicou 420 volumes em meio século de trabalho, dos quais 84 casos do inspetor Maigret, seu mais famoso personagem.

Apesar dessa produção insana, é considerado um dos maiores escritores de língua francesa. Henry Miller sintetiza o sentimento da crítica com a confissão: "Eu não acreditava que alguém pudesse ser, ao mesmo tempo, tão popular e tão bom". O relançamento daquela que é considerada a sua obra-prima, O homem que via o trem passar, publicada em 1938, confirma o espanto.

São duas as metáforas centrais do livro: o trem e o jogo de xadrez.
O trem representa o movimento, a aventura e a incerteza, por oposição à imobilidade, ao tédio e as certezas na vida de um burguês comum. Esse burguês, representado pelo protagonista Kees Popinga, não tem um nome comum, mas sua vida na casa e no trabalho é absolutamente burocrática. No entanto, nele hiberna um germe de revolta ou loucura, identificado pela emoção que sente ao ver um trem passar: "Enfim, se tivesse procurado em si mesmo, pondo a mão na consciência, um grão de loucura latente que pudesse predispô-lo a um futuro tumultuado, não lhe teria ocorrido pensar em certa emoção furtiva, quase vergonhosa, que o assaltava quando via um trem passar, um trem noturno, de preferência, com as cortinas baixadas sobre o mistério dos passageiros". 

O germe desperta quando a empresa à qual ele tinha dedicado a vida vai à falência por falcatruas do próprio dono. O narrador, como que colado às costas de Popinga, acompanha sua dissolução moral depois que ele toma o sonhado trem noturno e larga toda a sua vida para trás. O leitor acompanha a transformação do protagonista pela sua própria perspectiva, vendo o burocrata se transformar em criminoso que decidiu não prestar contas a mais ninguém: "Não sou louco nem maníaco. Apenas, aos 40 anos, tomei a decisão de viver como me agrada, sem fazer mais caso das convenções ou das leis. Descobri – um pouco tarde, convenho – que ninguém as observa e que até agora eu vinha me deixando iludir".

Uma das qualidades de toda a obra de Simenon se destaca nesse volume: como a narrativa não julga os personagens, o leitor é forçado a não julgá-los também, suspendendo pelo tempo da leitura seus códigos morais e suas certezas. Dessa maneira, tornam-se gritantes algumas perguntas fundamentais sobre a existência: vale a pena viver?; por que não morrer?; pior, por que não matar? Se o leitor ainda por cima já leu outros "simenons", como são conhecidos os seus livros, espera ansiosamente pela intervenção do inspetor de polícia, talvez o próprio Maigret. Mas este não é um "maigret"; o inspetor se chama Lucas (lembrando ironicamente as certezas do Evangelho), trabalha no mesmo distrito que Maigret mas se mantém à distância pelos movimentos do personagem e pelos truques do narrador.

Como o ex-burocrata e então criminoso foragido Kees Popinga é um exímio enxadrista, seus movimentos parecem se realizar num tabuleiro, levando-nos à segunda metáfora fundamental. O xadrez é considerado o mais violento jogo de estratégia, apesar do silêncio e do ritual que o envolve. O xadrez realiza, no tabuleiro, o sonho do controle total. O xadrez é em princípio um jogo de governantes: brinca-se de governar, vale dizer, de guerrear.

As peças, representações humanas como o cavaleiro, o bispo, a rainha e mesmo os peões, comem/matam umas às outras. Faz parte intrínseca do jogo – e da política, como sabemos – sacrificar suas próprias peças. Cada lance envolve vantagem e, ao mesmo tempo, alguma desvantagem. Apenas sabendo-se disso pode-se conseguir realizar um lance-surpresa, conhecido como Zwischenzug. A maior das emoções é sacrificar a peça mais poderosa, ou seja, a rainha, para arriscar um xeque-mate. Ora, Popinga sacrifica basicamente suas mulheres.

Depois de um de seus crimes, o personagem vai para um bar jogar xadrez. Jogando duas partidas simultâneas com um francês louro e um japonês, naturalmente vence a ambos. Faz questão de lhes pagar uma bebida e de lhes dar uma aula do jogo: "O importante é ter todas as peças na cabeça o tempo todo, não esquecer que o bispo guarda a rainha, que guarda o cavalo, que (...) é preciso manter o adversário em observação, descobrir-lhe o método, e não ter método próprio. Suponham que eu tivesse o meu: poderia bater um dos dois mas não os dois, porque o segundo teria percebido a minha tática, o que me poria em desvantagem".  "Não ter método próprio" é também e precisamente o famoso método do inspetor Maigret, misturando simpatia por qualquer ser humano com apreço pelo próprio inconsciente.

Enquanto comete suas transgressões e dribla a polícia, Popinga anota em um caderno as suas "jogadas" e as do inspetor, ao mesmo tempo em que escreve longas cartas aos jornais para protestar contra as matérias a seu respeito. As cartas servem à polícia e a psiquiatras que se esmeram em estudar aquele caso único, mas para o leitor elas são, ao mesmo tempo, divertidas, esclarecedoras e perturbadoras. Divertidas, por causa do contraste entre os crimes e o estilo ultra-formal do criminoso. Esclarecedoras, porque veiculam uma espécie de "poética moral" de Simenon. Perturbadoras, enfim, porque tornam lógico o ilógico, verossímil o inverossímil, compreensível o inaceitável.

A narrativa reserva alguns lances-surpresa para o final. O inspetor Lucas conseguirá prender Kees Popinga? Nesse caso, ele irá para a prisão ou para o hospício? E se... Ora, essas perguntas não se respondem na resenha de um livro como esse. Só podemos dizer que o final faz jus ao livro – principalmente a última frase.

Professor de Teoria da Literatura e autor do ensaio A ficção cética (Annablume).

"O homem que via o trem passar", Georges Simenon. Nova Fronteira, 202 páginas, R$ 35.

 

 FONTE: http://jbonline.terra.com.br/canais/cafe/simenon.htm 



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