terça-feira, 23 de junho de 2009

JOGANDO XADREZ CONTRA CAFAJESTES

Jogando xadrez contra cafajestes

Por Ivan Carlos Regina Ivan Carlos Regina

Todos nós já tivemos o desprazer de enfrentar adversários no xadrez que se valem de artifícios extra jogo para tentar nos derrotar. Alguns destes artifícios podemos considerá-los moderados. Talvez até nós já tenhamos tentado utilizá-los a nosso favor. Outros são pesados, graves, e quem os pratica podem receber o nome de cafajestes.

O leigo no jogo de xadrez tem a mania de idealizá-lo como um embate entre mentes brilhantes, um jogo limpo e perfeito, praticado somente por cavalheiros. Infelizmente, quase nunca é assim. Conta também o fator físico, o mental e o psicológico. Enervar o adversário intencionalmente, desestabilizá-lo emocionalmente é um recurso dos mais utilizados para induzi-lo a jogar mal, ou seja, ao erro.

Com a ajuda do Dicionário de Xadrez, de Byrne Horton, somado à minha pequena experiência de torneios, vamos listar os principais aborrecimentos que podemos, deliberadamente ou não, sofrer frente ao tabuleiro por parte de nossos adversários.

1. Colocar o oponente sentado de modo a perturbá-lo com o brilho do sol ou outros reflexos.
Dê preferência a sentar contra a parede, de maneira a poder visualizar todo o salão. Eventuais sapos, que indicam lances por voz ou por gestos, serão assim imediatamente desencorajados por você. Se estiver ofuscado por alguma janela , mude a cadeira de posição, use óculos escuros, avalie a partida de outro ângulo. Jogadores experimentados costumam levantar-se e verificar o tabuleiro do ponto de vista do adversário. Como as coisas parecem diferentes vistas do lado de lá!

2. Fumar charutos mal cheirosos ou atirar fumaça na face do oponente ou através do tabuleiro.
Isto é um recurso vil, rasteiro, que pode ser denunciado. Infelizmente, há outros artifícios muito mais tristes. Enfrentei certa vez um adversário cujo hálito era com certeza cruzamentos de cebolas amanhecidas, fezes de cachorro pastosas cozidas no fogo lento do demo. Cada vez que ele abria a boca eu perdia a concentração, minha mente se turvava. Nestes casos não se avexe de lançar mão de um lenço para cobrir o rosto e evitar a derrota. A mesma defesa pode ser usada contra cheiros piores oriundos de orifícios localizados mais ao rés do chão.

3. Mudar constantemente de posição, como, por exemplo, balançando o corpo ou a própria cadeira, mantendo-a suspensa sobre as duas pernas posteriores; ou sacudindo-se de diversos modos.
Este recurso tem um sem número de variações. Um grande amigo meu contou-me que em sua juventude, em Portugal, jogava uma partida que estava virtualmente ganha. Seu adversário, ao cientificar-se da posição desesperada em que se encontrava, começou a cutucá-lo, por debaixo da mesa, com um par de muletas que usava. O artifício utilizado, embora torpe, somado à inexperiência dele, deu resultado. Enervou-se e apesar da sua superioridade posicional, tomou um mate previsível.

4. Executar maneirismos embaraçosos a fim de dar falsa impressão acerca da correção dos lances, tais como: resmungar quando um sacrifício ou uma troca tenham sido recusados; torcer ou entrelaçar os dedos para demonstrar satisfação por um lance próprio, ou mostrar surpresa pelo desacerto de um lance do adversário.
Alguns adversários são verdadeiros palhaços, fazem mímica, estalam os anulares, trocam constantemente de expressão facial para nos desestabilizar. Procure não se deixar envolver por estes trejeitos.

5. Bater com uma peça no tabuleiro com ares façanhudos, lançando ao mesmo tempo ao adversário um olhar "dominador".
Alguns jogadores costumam franzir o cenho, como um cowboy prestes a fuzilar suas vítimas; outros ostentam um ar "blasé", como se estivessem jogando pôquer. Enfim, não importa o olhar do adversário, o que tem relevância são as peças colocadas sobre o tabuleiro. Elas dizem da verdade, do bem, do mal, do inferno e do paraíso.

6. Pentear-se constantemente, ajustar os óculos ou as roupas.
Alguns chegam ao exagero de fingir um tique nervoso, como abrir e fechar os olhos com um esgar e um muxoxo, na tentativa de nos distrair. Em caso de dúvida, dê o troco na mesma moeda.

7. Martelar com os dedos, mão ou pés.
Variante da anterior, procure abstrair-se por completo destas ações anti-jogo.

8. Pairar e oscilar com a mão sobre as peças para causar confusão.
Eis aqui um item que me deixa possesso. Se for sua vez de jogar (seu relógio correndo) peça licença e afaste carinhosamente as mãos do adversário do tabuleiro. Se for a vez dele cerre os olhos, e só os abra ao ouvir o clic do relógio indicando que o lance já foi feito.

9. Cantarolar ou assobiar baixinho; falar consigo próprio ou expelir suspiros.
Há coisas bem piores do que isto. Ouvi falar (eu nunca vi, mas jogo muito pouco) que chegam até a tartamudear árias de óperas, ou, o que é pior, trechos de pagode. Cá entre nós, recurso deplorável.

10. Conversar com espectadores ao fazer os lances.
Aqui o bicho pega. Há alguns jogadores que "pensam na hora errada". Sabe quando você dá um xeque e só tem uma casa para o rei do adversário ir e assim mesmo ele pensa dez minutos? Eu particularmente não tenho paciência e costumo "ir passear", circulando pelas outras mesas. Lembro-me de um jogo contra um "nissei", extremamente educado, num torneio que joguei. Eu jogava, e como ele pensava muito, eu ia passear. O japonês, muito cortês, levantava a mão para avisar-me, cada vez que era a minha vez de jogar. Disse-lhe que não era preciso fazer isto, que eu voltaria a tempo. Ele ficou extremamente tenso e logo depois, cerca de três lances à frente, cometeu um erro estúpido, tirando a torre que apoiava um bispo e deixando-o de graça. Típico de quem pensa alguns lances depois e se esquece de efetuar o primeiro lance, computando na cabeça que já o havia feito. Evidentemente tomei um bispo. Pensei até em propor-lhe voltar o lance (para quem não sabe, sou um cavalheiro às vezes), mas não podia fazer isto pois era um torneio em equipes e, é lógico, a minha equipe não ia gostar nada disto. O jogo prosseguiu e o japonês, enfurecido, enviou-me um ataque "kamikaze" de peões na ala da dama, muito difícil de conter. Ganhei o jogo, graças à atuação do bispo branco que me sobrara, mas fiquei incomodado com a situação. Teria sido eu um pouco cafajeste?

Estas perturbações acima descritas foram escritas após a segunda guerra mundial. De lá para cá muitos e modernos artifícios foram criados (ou imaginados) para perturbar adversários no jogo de xadrez.

Fischer, em seu match pelo Campeonato Mundial contra Spassky, alegou alguns incrivelmente imaginativos, tais como:

- A equipe soviética estava hipnotizando-o a partir das primeiras filas da platéia. Solicitou então que todas as filas iniciais de cadeiras deviam ficar vagas; foi um transtorno para a organização, pois muitos destes assentos já estavam vendidos para particulares.

- A cadeira em que ele, Fischer, sentava, poderia conter micro seringas hipodérmicas que o estavam anestesiando, embotando seu cérebro. A cadeira foi radiografada e inspecionada, nada sendo encontrado.

- Poderia ter sido instalado um emissor de microondas ou outro tipo de raios, com foco nele, Bobby Fischer, para o perturbar durante o prélio.

São as mesmas coisas que listamos antes, mas agora muito mais sofisticadas. Estávamos no tempo da "guerra fria" e cada alegação desta era notícia no mundo inteiro. Nenhum jornal sério publicaria uma alegação de perturbação qualquer num jogo de xadrez, mesmo que na disputa pelo título mundial. Agora, estas afirmações paranóicas, de ordem tecnológica, estavam na "ordem do dia" e foram estampadas em todos os jornais do planeta. Assim Fischer trouxe para o noticiário comum as coisas do xadrez, fazendo milhares de pessoas se interessarem pelo nobre jogo. Coisa de gênio, ainda que quando começou a ganhar as partidas Fischer nada mais alegou, aí estava tudo certo.

Interessante que quem ganha nunca tem reclamações a fazer...

Os artifícios utilizados para perturbar o adversário são muitos e impossíveis de descrever minuciosamente numa simples crônica como esta. Dizem que alguns jogadores, afim de desestabilizar o contendor, chegam a paquerá-lo com pequenas piscadas maliciosas, o que, convenhamos, tende a enervar a maior parte dos heterossexuais.

Brincadeiras à parte, termino com outra história de meu amigo português (veja o item 3 desta), que é uma das pessoas mais honestas que conheço em minha vida. Jogando xadrez amistosamente em minha casa, tinha contra o adversário uma posição massacrante, ganhadora. Necessitando ir ao banheiro, seu adversário mexeu várias peças de lugar no tabuleiro, modificando a posição e deixando a ele em posição desesperada. No retorno da toillete, meu amigo ficou olhando a posição alguns minutos e depois, candidamente, proferiu: "Veja como é a vida, fui ao banheiro achando que a partida estava ganha, e agora verifico que na realidade estava perdida". As gargalhadas foram gerais, e nem seu adversário, autor da cafajestada, resistiu, contando o que havia feito e abandonando de fato.

Que o tabuleiro de xadrez seja o encontro de nossa inteligência contra a do outro, e que saibamos reconhecer a beleza aonde quer que ela esteja.
Clique e conheça o(a) autor(a) deste artigo:
Ivan Carlos Regina

FONTE: http://www.clubedexadrez.com.br/menu_artigos.asp?s=cmdview4181

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